Como eu tardo mas não falho, hoje publico finalmente o relato da caminhada entre Aumont-Aubrac e Figeac, com quase dois anos de atraso, e de forma bem resumida, porque a memória já não é a mesma de alguns anos atrás.
Diferente do primeiro trecho em 2018, nessa etapa tive a companhia de minha prima Carla, uma delícia de surpresa que a vida me reservou. Como sou 10 anos mais velha que ela, durante muito tempo estávamos em momentos muito diferentes da vida e não tivemos muito contato. Poucos anos atrás estive no Brasil de férias, nos reencontramos e não paramos nunca mais de tagarelar.
Esse tipo de viagem é um exercício pra mim, control freak assumida, que dificilmente sai de casa sem saber da previsão do tempo, da hora do trem ou de onde/o que vou jantar. Adoro planejar viagens e faço sempre um roteirinho em power point pra me situar. Mas não na peregrinação. Esse estilo de viagem é como disse uma vez o sábio Forrest Gump: uma caixa de surpresas. E como houve surpresas nesse trecho!
Pra começar, tínhamos apenas as passagens de avião para Paris e de volta pra Copenhague. O resto, pensei, compramos na hora. Hotel reservado apenas em Paris e na primeira noite em Aumont-Aubrac.
O que eu não tinha contado era que fomos justamente no feriado de Corpus Cristi, onde todos os franceses resolveram viajar. Então rapidamente percebemos que pelo menos de um dia pro outro, precisaríamos fazer reservas nas cidades onde pernoitaríamos. E ainda assim, fomos deixando a passagem de volta pra Paris ficar pro final – eu acreditava que seria complemente descomplicado comprar uma passagem de trem num guichê na estação em Figeac, no último dia.
Assim chegamos em Aumont-Aubrac, onde jantamos um maravilhoso aligot no restaurante Prunières e dormimos no La Ferme de l’Aubrac. No dia seguinte partimos cedo.
No primeiro dia caminhamos até Nasbinals. Não lembro direito dessa primeira etapa, então vou descrever em algumas imagens.
Depois de Nasbinals, nosso destino foi Saint-Chély-d’Aubrac, um lugarejo fofo com tantas opções de albergue que achamos que seria moleza.
Então fomos direto a um hotel que também tinha uma parte albergue (mais barato). Mas o albergue estava cheio e só tínhamos a opção de um único quarto a 80 euros. Eu achei muito caro e garanti a minha prima que encontraríamos outro mais barato. E ainda falei pra moça na recepção: A gente vai procurar outro mais barato. Ela só respondeu um bonne chance.
Andamos pelo vilarejo inteiro e ligamos pra todas as opções no meu guia… e estava tudo lotado! O jeito foi admitir que precisávamos do quarto caro da moça e voltar correndo na humildade.
Quando entramos no hotel, tinha um casal sendo atendido na recepção. Pensei: Ferrou. O casal vai pegar o último quarto que era pra ser nosso. Mas milagres acontecem, e aquele casal estava na verdade indo embora do albergue e a moça fofa disse: Agora tem vaga no albergue pra vocês. Quase choramos de emoção!
Agora com um teto, jantar e petit-dej garantidos, pudemos relaxar e descansar as pernas.
Dia seguinte com a lição aprendida, paramos para almoçar a caminho de Estalion e ligamos para alguns telefones do meu guia para fazer uma reserva. Demos sorte de primeira: um senhor disse que tinha dois quartos em sua casa e estaria esperando pela nossa chegada aproximadamente às 16 horas.
Esse dia foi o único em que pegamos chuva – mas foi uma chuva fina o dia inteirinho. Com o caminho cheio de lama, acabamos andando mais devagar e atrasamos a chegada em Estalion. Me lembro de estar exausta e pensar que o quarto não devia mais estar reservado pra gente, por causa do nosso atraso – e pensei que conseguiríamos um hotel ou albergue no centro de informações turísticas, pra onde nos dirigimos.
Lá tivemos más notícias – não havia uma única vaga em nenhum hotel, albergue ou similar na cidade inteira. Estava tudo lotado.
Bom, então é hora de ligar para o chambre d’hôte (quarto em casa de família que acolhe peregrinos por uma noite) com quem tínhamos feito a reserva no almoço, no meio do caminho, e esperar que ele ainda tenha os quartos para nós – mesmo com 2 horas de atraso.
Na primeira tentativa liguei para o número errado, nem lembro como ou porque. Entrei um pouquinho em pânico, mas ainda tentando manter a pose 🙂
A mocinha da recepção já tinha lavado as mãos e eu mais uma vez liguei pro chambre d’hôte. Caiu na caixa postal e deixei um recado (sinal claro de desespero).
Eu e Carla nos olhamos com cara de derrota e de quem vai dormir no banco da praça. Não havia mais nada a ser feito. O jeito era ir encarar a chuva do lado de fora e talvez pedir esmolas.
Quando eu abro a porta para sair, o milagre chega. Foi no mesmo segundo: eu abri a porta do centro de informações. A porta ainda estava na minha mão. Carla vinha atrás de mim. Estávamos rumo à sarjeta. Um carro chega (na minha lembrança, em alta velocidade – ah, vai… adicione um quê de Hollywood na cena) e pára na nossa frente. O motorista abre a janela e pergunta: Flaviá?
Eu quase gritei, sim, sou eu, me adota, me leva!!!! Mas fui mais comedida. Em 2 minutos estávamos no carro indo pro chambre d’hôte. O Gérard, nosso anfitrião, nos deu um quarto (um para cada, com cama de casal!) no primeiro andar só nosso, com um banheiro enorme com banheira, nos levou de carro num restaurante para o jantar, nos ofereceu um café da manhã de realeza, enfim, foi um anjo, nada menos.
No dia seguinte nos despedimos e seguimos em tempo firme para o próximo destino – Golinhac, parando pra almoçar e descansar na deslumbrante Estaing.
Mais uma vez já chegamos em Golinhac com a reserva garantida. Nossos anfitriões foram queridíssimos, o jantar e café-da-manhã comunitários com os outros hóspedes foi lendário, o quarto com uma linda vista verde…. oh, Golinhac!
O destino seguinte foi aquele que ganhou nossos corações, e um dos mais lindos dessa etapa: Conques! Também sem palavras pra descrever, compartilho algumas imagens.
A última noite foi especialíssima, graças à hospitabilidade do nosso anfitrião Andrea, do Bio-Gite La Vita è Bella. Depois da calorosa recepção, Andrea nos serviu um dos melhores jantares da semana (com direito a opcão sem glutem), uma pasta feita em casa simplesmente impecável e indescritível de boa, regada a um bom vinho tinto italiano e pão, claro. Andrea tocou piano lindamente, e ainda nos ajudou a procurar passagens de trem ou ônibus de Figeac (nosso destino do dia seguinte) a Paris, de onde voltaríamos para Copenhague. O café da manhã no dia seguinte foi igualmente divino. Um querido e altamente recomendado.
A passagem de Figeac para Paris não foi encontrada pela internet, e eu meio nervosa, meio (ainda) confiante, tinha (quase) certeza que, chegando na estação do trem em Figeac, não seria problema algum comprá-la num guichet. Pesquisando com Andrea, antes de deixarmos o albergue, vimos que tinha um horário de trem às 13:45 (ou alguma coisa perto disso). Então o plano era apertar o passo e chegar em Figeac a tempo de pegar esse trem.
Mal paramos pra descansar. Foi praticamente uma corrida de 25km – com algumas subidas e descidas, e muito calor! Quando entramos na cidade antes da uma hora, comemoramos o sucesso da expedição e nos dirigimos à gare, tranquilíssimas 🙂
Chegando lá, descobrimos que a comemoração tinha vindo cedo demais. Havia mais um desafio a ser vencido: a estação estava queimada e abandonada! Mega cansadas que estávamos, precisamos nos recuperar do choque rapidamente e encarar a realidade. Assim, descemos uma rua em forma de ladeira íngreme de pouco mais de um quilômetro rumo ao centro, onde havia um centro de informações turísticas. Acreditávamos que ali conseguiríamos comprar alguma passagem pra Paris, ainda que não fosse de trem, mas de ônibus, carroça, skate, valia tudo!
O Centro de Informações estava fechado pra almoço, mas abriria em poucos minutos. Nesse momento, um pequeno, discreto desespero começou a bater na porta. Perguntas começaram a passar pela minha cabeça. E se? E se? Estávamos num sábado. Nosso voo de Paris pra Copenhague era segunda de manhã.
Uma da tarde em ponto nos debruçamos no guichê explicando nossa situação pra senhorinha que procurava, procurava, procurava alguma saída pra gente na tela de seu computador. E falava: não tem nenhuma passagem pra hoje…. nem pra amanhã…. nem pra segunda-feira. Nem ônibus, nem trem, nem carroça. E hotel aqui? Hotel também não tem. Nosso destino parecia ser o banco da praça, mais uma vez. No exato momento em que, resignadas, nos dirigíamos para a saída, uma nova atendente surge de trás de uma porta que estava fechada até então. Ela perguntou se podia ajudar e a senhorinha explicou nosso drama. Em dois minutos essa mulher tomou controle do computador e de nossas vidas. E deu o veredicto: vocês precisam pegar o ônibus pra Toulouse, que sai daqui a 10 minutos lá da estação de trem queimada, e chegando em Toulouse vocês vão pegar o avião pra Paris. É a única saída.
Já estávamos saindo correndo porta afora nesse momento, agora empenhando todas as nossas forças 1 km ladeira acima até a estação, carregando mochila, desespero e esperança ao mesmo tempo, até avistarmos o ônibus e literalmente pularmos pra dentro dele, arfando, com o pulso a mil. Um segundo depois o motorista deu partida – estávamos indo pra Toulouse.
Já no ônibus compramos 2 das últimas 4 vagas no voo das 8 da noite para Paris, que partiu lotado 🙂
No fim tudo dá certo, já disse um filósofo que se ainda não deu certo, é porque ainda não acabou!